Uma crítica às reformas bem-estaristas e a um episódio recente no Brasil.
Gato Negro - Núcleo Libertação Animal?
(cc) Alguns direitos reservados
Desde meados do século XIX o movimento de Bem-estar Animal está promovendo diversas reformas no tratamento dos animais. O movimento bem-estarista tem como pressuposto que os animais são seres sencientes, ou seja, são capazes de experienciar dor. É característica também do bem-estarismo o reconhecimento de que devemos deixar de inflingir sofrimento "desnecessário" ou "gratuito" aos animais - a chamada crueldade - e que devemos tratá-los "humanitariamente" ou "compassivamente". No entanto, essa teoria não questiona, e pior reforça o uso dos animais como propriedade. Como não poderia ser diferente a maioria das pessoas e grupos ligados ao bem-estarismo clássico são ávidos consumidores dos frutos da escravidão animal, ou seja, de produtos animais.
O bem-estar animal, no entanto, tem finalidades que em nada beneficiam os animais, pelo contrário, o bem-estar animal vem para endossar práticas exploratórias, aperfeiçoar seus métodos e torná-los mais bem aceitos socialmente. O bem-estarismo não é só uma posição, como uma necessidade hoje para os exploradores de animais, pecuaristas, cadeias de fast-foods e "indústrias" da carne e derivados animais, sem seguir essas regulamentações bem-estaristas as empresas estariam diminuindo o valor agregado de seu produto e assim consequentemente perderiam mercado. Por isso estão todas empresas buscando de alguma formar estar "em acordo com as normas de bem-estar animal" como diz a Sadia [1]. As grandes redes de fast-foods já estão envolvidas nesse tipo de ação há algum tempo e entedem mais do que ninguém que essas normas de bem-estar melhoram até mesmo a lucratividade da empresa. Nas palavras da McDonalds: "Práticas adequadas do bem-estar animal também beneficiam os produtores. Agir de acordo com as nossas diretrizes de bem-estar animal ajuda a garantir uma produção eficiente, reduzindo desperdício e prejuízos. Isso torna os nossos fornecedores altamente competitivos? [2]. O Congresso Internacional da Carne, realizado recentemente em São Paulo teve três atividades enfocando o bem-estar animal que, segundo os organizadores é hoje uma "exigência dos consumidores" [3]. Ou seja, os(as) consumidores(as) de carne.
Direitos Animais uma luta muito além do tratamento "humanitário"
Para a luta de Direitos Animais, os animais não deveriam ser tomados como meios para fins humanos e nem como propriedade. A escravidão não é um conceito vazio. Presenciamos na História séculos de escravidão humana. O caso mais extremo e clássico de escravidão é aquela em que o escravo vive em total sujeição do senhor, pois o(a) escravo(a) é considerado uma propriedade do senhor. A escravidão do animal humano ainda persiste, mas felizmente ela é socialmente rejeitada e a grande maioria dos países a proíbem. Hoje, de forma geral, podemos dizer que o Ser Humano, pelo menos em tese, não pode ser propriedade de outro.
No final da década de 70 surgiram várias pessoas, autoras(es) e grupos questionando o uso per se dos animais. Para essas pessoas precisaríamos não apenas tratar os animais "humanitariamente" mantendo os convenientes hábitos. Era necessário abolir e não regulamentar a exploração animal. Para isso essas pessoas iniciaram a luta pela divulgação do veganismo e do não uso dos animais não-humanos para fins humanos.
Ações idênticas não conduzem a resultados totalmente distintos
Hoje vivemos uma ebulição de grupos ligados à "proteção animal". Diversos grupos ainda se proclamam de "direitos" animais, mas continuam apoiando o bem-estar animal, como uma suposta ponte que levará a "abolição" da exploração animal.
A PETA é um dos grupos mais milionários e destacados, com faturamento anual 28 milhões de dólares. Para a PETA, apoiar o bem-estar animal é um imperativo. Não é por acaso que a PETA premia como visionária a projetista de ?sistemas humanitários de abate e manejo? Temple Grandin [4]. Mesmo sabendo que a própria Grandin, descreve esses sistemas "humanitários? como mais lucrativos e seguros, em suas próprias palavras: ?mantém a segurança, a eficiência e a lucratividade da indústria da carne?. [5]
Os bem-estaristas não estão passando qualquer mensagem de abolição e de não uso dos animais, pelo contrário estão conservando a exploração animal e a tornando ainda mais aceita. É esse o trabalho de Temple Grandin e é ela que a PETA tem elogiado por ?ter feito mais para reduzir o sofrimento no mundo do que qualquer outra pessoa até hoje.? [6] No final das contas o discurso e as ações da PETA e Grandin não são assim tão diferentes.
Como podemos então acreditar que a abolição deve agir com a mesma fórmula escravocrata que o bem-estarismo tem usado? Não há qualquer indício de que o bem-estarismo, de repente, mudou sua opinião e se tornou outra coisa radicalmente diferente. Os exemplos que citamos acima da Sadia, McDonalds e do Congresso da Carne são de hoje em dia e estão na nossa cara repetindo os clichês dos fins do séc. XIX. Como podemos pensar que o bem-estar animal, o "manejo humanitário" nos conduzirá ao fim da exploração animal?
Carta ao Papa
Recebemos há pouco tempo uma carta endereçada ao Papa Bento XVI, escrita com dedicação e empenho pelo grupo VEDDAS e apoiada por mais de 70 organizações, inclusive algumas que carregam a palavra abolição no nome [7]. Entendemos que a confusão é generalizada entre pessoas e grupos de proteção animal, que mesmo com boas intenções continuam interpretando equivocadamente a posição de Direitos Animais.
Essa carta pede "humildemente" ao Papa, que entre sua comitiva de pessoas "bondosas e compassivas" não consuma carne de vitela, já que sua "produção caracteriza-se pela mais abjeta crueldade". A carta se desaba em apelos bem-estaristas citando nossa falta atual de "bondade, delicadeza e sensibilidade".
O reflexo na mídia não foi tão grande, mas resultou em uma matéria no Terra e UOL [8], intitulada: "Vegetarianos pedem que papa não coma carne vermelha". Surpreendentemente a matéria saiu menos bem-estarista que a encomenda, se a carta pedia para que o Papa não comesse carne de vitela apenas, a matéria saiu um pedido contra toda carne "vermelha". Entretanto, essa matéria reforça a idéia de que vegetarianos - sem o prefixo "ovo-lacto" - não comem carne "vermelha", mas comem outras carnes e produtos de origem animal.
Não estamos também dizendo que mais sofrimento é igual a menos sofrimento. De fato, a vitela é produzida de forma extremamente cruel. No entanto, não foi passada nenhuma mensagem de direitos animais e sim uma clara mensagem de bem-estar animal. Uma mensagem não tão diferente da indústria da carne e seus(suas) funcionários(as). Reforça assim o senso comum de que algumas práticas são "desnecessárias" e gratuitas, mas outras são automaticamente necessárias e aqui podemos incluir o consumo não só outras carnes, como ovos, leite, pele, couro e usos em entretenimento.
Podemos ir além, e dizer que para produzir o leite que - em provável interpretação da carta - o papa pode tomar de "consciência limpa", é necessário o nascimento de um bezerro, este é usado para a produção da vitela. Ora, se não cessarmos a produção de leite, os bezerros continuarão sendo usados para a vitela ou sendo descartados ainda jovens para produção de subprodutos da carne. Além disso, as vacas leiteiras são escravizadas por toda sua vida e no fim vão parar no abatedouro. Ademais nem isso é efetivo se não se educa para o veganismo completo, mas isso serve para ilustrar que a origem da escravidão está muito além do tratamento e reside no status de propriedade dos animais.
Curioso saber que justamente o caso da vitela tem sido uma preocupação da indústria da carne. A Straus Veal & Lamb é uma empresa do ramo que conseguiu um aumento substancial nas suas vendas, aplicando formas "humanitárias" de produzir a vitela [9]. Se endossássemos essa carta, passaríamos a mensagem de que se não houvesse "crueldade" então consumir vitela seria "ok".
Algumas pessoas argumentam que enviar ou não uma carta como essa seria apenas uma questão tática. Como demonstrado acima o problema não é apenas tática. E se optássemos por uma carta supostamente abolicionista, digo de direitos animais. Então, provavelmente, também teríamos problemas táticos. Primeiro porque acreditamos piamente que um movimento que foca a educação como o nosso deve ser de base e agir a partir da base. Existem métodos mais eficientes de se educar para o veganismo do que mandando uma carta para um líder religioso de alta hierarquia. Segundo, o papa representa hoje a igreja católica e todas controvérsias que não são interessantes de se ignorar. Terceiro, alcançar a mídia, não necessariamente significa alcançar as pessoas. Poderíamos chamar a atenção, mas muitas pessoas poderiam nos ignorar porque simplesmente não questionamos nada além da questão animal para esse influente líder ou porque fomos pueris em demasia.
É necessário começar a agir a partir da base, educando para o veganismo e pela abolição da escravidão animal. Isso não é utópico, podemos fazer agora e através de inúmeras formas criativas e podemos começar com as pessoas que estão ao nosso lado.
Notas:
1. Gripe Aviária Medidas Preventivas. Integrados:
2. Animal Welfare Update: North America.
3. IMS
4. Peta Proggy Awards
5. www.grandin.com
6. New Yorker, 14 de Abril, 2003
7. www.veddas.org.br/papa.htm
8. Vegetarianos pedem que papa não coma carne vermelha.
9.
Revista Meating Processing. Revolutionizing the Veal Industry (matéria de capa)
Bibliografia:
Textos Gary L. Francione
Rain Without Thunder
FRANCIONE, Gary L.
Gato Negro - Núcleo Libertação Animal
www.gato-negro.org